A Tempo e Horas

Saiba mais sobre a jovem que uniu arte e coração.

Escritora, dona de uma loja de roupa e patinadora no gelo. Estas eram as profissões imaginadas por Mafalda nos seus tempos de criança. Três ambições que embora possam não parecer compatíveis, faziam todo o sentido para a menina que escreveu o “bilhete de identidade” que a Mafalda de 24 anos encontrou durante a quarentena. Um bilhete que demonstra que a sua luta contra a escrita era, na verdade, um amor escondido desde o início.

Nada soava bem até se encontrar, ao seu estilo e o seu lugar, mas em 2020 o som é harmonioso entre todos os seus projetos. Mafalda Mota é hoje uma ilustradora, autora publicada e criadora da “Heróis Sem Capa”, uma iniciativa que, através da arte, conta a história de pessoas tal como nós, que vivem vidas de heróis.

O projeto, que venceu o segundo prémio extraordinário do Mestrado em Edição e Publicação atribuído pela CEDRO, a entidade de direitos de autor de Espanha, nasceu de uma noite de insónia. A autora, que preza o seu raciocínio habitualmente muito lógico, foi surpreendida por uma epifania que alterou a sua vida por inteiro. Sempre quis trabalhar com crianças e acrescentou a essa vontade uma descoberta proveniente de um momento difícil. Com uma ligação muito próxima aos tios-avós, os adorados António e Milú, Mafalda sentiu o impacto do seu falecimento de forma intensa. Foi na ilustração que descobriu uma forma de cooperar com a dor, partilha a artista com alguma hesitação. Através da arte, sentiu-se capaz de prolongar as suas vidas, contar as suas histórias, partilhar os seus ensinamentos e, assim, processar os seus próprios sentimentos. Desejou nesse momento ser capaz de fazer o mesmo por outras pessoas. Assim surgiu o objetivo de criar um projeto que prolongasse a sua existência e, sendo tão intrinsecamente ligado à sua própria essência, Mafalda soube que só ela poderia torná-lo realidade: “queria falar sobre pessoas comuns, de todos os tipos, de todas as formas e de todos os feitios, mas que não fossem as grandes personalidades que nós já conhecemos como grandes heróis. Queria encontrar o valor nas pessoas que vivem connosco, que partilham a nossa vida, que estão ao nosso lado”.

O projeto proporcionou-lhe não só a oportunidade de conhecer heróis sem capa, como de criar verdadeiras relações de cumplicidade com quem se cruza no seu caminho. “Às vezes falar com uma dessas pessoas faz-me sentir que estou a fazer alguma coisa bem”, admite a jovem com um ténue sorriso, “sentir que posso ajudar ao partilhar aquilo que eles me deixam partilhar”. O que mais a inspira é conhecer as pessoas que possibilitam o funcionamento de associações como a Associação Portuguesa de Neurofibramatose (APNF) e a Associação Sanfilippo de Portugal (ASFP), assim como sentir que é possível iluminar os dias de quem passa por momentos difíceis. Um dos seus grandes objetivos é, não só dar visibilidade ao projeto como à missão destas associações, cujas mensagens se cruzam com a sua. Felizmente, poderá ver esse objetivo mais próximo através da publicação das colaborações com estas iniciativas em formato de livro infantil. O livro em parceria com a Associação Sanfilippo, “A Minha Vida com a Minha Irmã”, está quase a ser lançado e promete aquecer corações este Inverno.

Uma obra que já atingiu essa meta foi o seu mais recente lançamento “Um Salto para a Água”, uma história emocionante acerca da pequena Bay, uma heroína cuja coragem tem o poder de tornar o mundo mais bonito. Mafalda relembra o momento em que recebeu o seu livro pela pela primeira vez com um brilho especial no olhar: “recebi-o durante a quarentena, foi uma luzinha no fundo do túnel”. É com notável orgulho que a autora recorda experienciar todos os detalhes da obra pela primeira vez, desde o cheiro característico das folhas de papel novinhas em folha ao relevo do detalhado da capa. Era mais do que tinha imaginado: “a equipa da Cultura concretizou mesmo um sonho, são maravilhosos em todos os aspetos e mais alguns, quase conseguiram ler a minha mente”. A relação com a Cultura e, inicialmente, com a Agência das Letras começou com um simples almoço no qual se encontrava o nosso publisher João Gonçalves e no qual Mafalda teve uma entrada triunfante.

“Com o problema que tenho em chegar a horas às coisas, cheguei atrasada” relata a ilustradora entre risos, “pedi desculpa e o João mandou uma piada sobre os artistas estarem sempre atrasados” e relembra brincar com o assunto e admitir que era exatamente esse o seu caso. Dessa boa disposição surgiu uma relação de trabalho ainda mais positiva, depois de Mafalda ter falado sobre o projeto que tinha em mãos. Habituada aos nãos do mundo artístico, a jovem de Viseu considerou que o nosso publisher estava apenas a demonstrar a sua simpatia quando mostrou interesse no seu trabalho quando, na verdade, nasceu entre talheres uma dinâmica de sucesso entre os dois.

Com o intuito de aprender mais acerca do mundo editorial, Mafalda inscreveu-se nas nossas sessões de mentoria e confessa ter, a partir daí, visto o projeto com um olhar totalmente diferente, mais amplo, conseguindo avaliar os pontos positivos, as arestas a limar e o caminho a percorrer. Com uma rede completamente nova de contactos, as possibilidades multiplicaram-se. A artista não esconde a gratidão pelo apoio que sentiu não só quanto ao livro que viria a ser publicado, mas em relação a todos os seus esforços: “(o João) quis-me ajudar em tudo: na questão estética do projeto, como é que eu estava a comunicar, se estava a falar com as pessoas certas, coerência entre todas as minhas redes sociais”, enumera calmamente, “essa é uma das mil e uma razões pelas quais eu não trocaria a Cultura por nenhuma outra editora caso surgisse a oportunidade. Acho que não iria encontrar este tipo de apoio e este tipo de trabalho com mais nenhuma editora”.

Assumidamente de ideias fixas, a jovem não esquece como teimou que nunca se sentira capaz de escrever, apesar de esse ser um sonho seu. Não foi até se aperceber que tinha de expandir os seus horizontes e encontrar o seu lugar no universo das letras, que Mafalda entendeu que só tentando, falhando, deitando fora, escrevendo, escrevendo, escrevendo poderia encontrar o seu lugar num mercado tão misto. O mesmo aconteceu com o seu estilo de ilustração. Apesar de ter crescido com o bichinho da arte, entre o 10º ano de escolaridade e o fim do mestrado, Mafalda não se imaginava enquanto ilustradora por não se identificar com o caminho que muitos profissionais lhe apresentavam como sendo o seu. Foi quando “abriu a cabeça”, como diz insistentemente, e deixou entrar todo o tipo de influências, como uma das suas artistas de eleição, Beatrice Blue, que chegou à conclusão de que poderia encontrar um canto no mundo da ilustração que lhe pertencesse. Com o projeto a contar o seu segundo aniversário, a artista nota a evolução que se deu no seu próprio estilo de ilustração: “depois de eu ter recusado a ilustração durante aqueles anos todos, vinha um bocado atrasada como em tudo” comenta com uma alegre gargalhada, adicionando que as suas peças ganharam volume, movimento, cor e vida. Uma evolução que exigiu paciência e esforço, já que a jovem de 24 anos não se considera um talento natural para o desenho.

A paciência que teima em fugir e o anseio por uma estabilidade que desejava ser mais constante, levam a um incontornável e assustador obstáculo: a tentação de desistir. “Sou eu. O meu maior obstáculo, como na maior parte das coisas na minha vida, sou eu” afirma, com um breve suspiro. A sua ligação emocional ao projeto e a responsabilidade que essa componente acarreta criam uma dinâmica perigosa na qual o estado de espírito da autora se reflete no produto. É o apoio dos pais e do irmão, do namorado e dos amigos Xana e Simão que mantêm a banda a tocar. “Não deixam que eu diga adeus” diz com um tom mais sério “há dias em que apetece largar tudo e começar de novo noutra coisa ou escolher um emprego normal das nove às cinco que não me vai satisfazer a muitos níveis, mas não interessa, ao menos é uma coisa estável”. Medos e hesitações naturais num caminho tão corajoso como o de Mafalda, que com o apoio dos seus, continua a enveredar por uma estrada bonita, mas assustadora pela sua grandiosidade.

Uma estrada ainda com muitas paragens por explorar, desde publicações internacionais, a conteúdo mais interativo, a um possível espaço Heróis Sem Capa onde a expressão criativa possa ter um papel libertador para muitas crianças. Mafalda acusa a sua crónica forma de chegar atrasada, mas parece-nos a nós estar a chegar até ao seu sonho ao ritmo certo.